O grupo de pesquisa Kadjót (Grupo interinstitucional de estudos e pesquisas sobre as relações entre tecnologias e educação)contesta as “Diretrizes Gerais sobre a Aprendizagem Híbrida”, documento do Conselho Nacional de Educação (CNE) submetido a consulta pública em 16/11/2021. Contestamos engodos, equívocos e falácias contidos neste documento, no que diz respeito à reorganização da educação escolar em seus critérios para a flexibilização e a hibridização da aprendizagem, independente do nível e da modalidade de ensino. Apontamos estes contraditos e fazemos alguns questionamentos às ideias que estão na base das referidas Diretrizes.
Qual o sentido de regulamentar uma metodologia?
A discussão sobre educação, ensino ou aprendizagem híbrida não é nova, como nos apresenta o próprio documento do CNE, bem como os estudos sobre educação a distância (EaD), e-learning e tantas outras adjetivações à educação que faz uso de aparatos digitais.
Atividades que superam os limites de concomitância de tempo e espaço entre professores e estudantes, com maior ou menor uso de tecnologias digitais, fazem parte do processo de ensino e aprendizagem e não necessitam de adjetivações. A própria LDB/96, em diversos artigos e parágrafos, indica a possibilidade de atividades complementares àquelas desenvolvidas formalmente no espaço escolar.
Se já está prevista a flexibilidade de formas de ensino e de uso de tecnologias digitais nos processos educativos, por que regulamentar uma metodologia de ensino como diretriz educativa? Além disso, qual é o sentido de propor uma mesma metodologia para todos os níveis e modalidades de educação no Brasil? O uso da aprendizagem híbrida no modelo proposto desconsidera as especificidades de ordem psicológica, pedagógica e social dos estudantes! A quem interessa este tipo de regulamentação?
O que o documento do CNE negligencia, e até ignora, é o aprofundamento e a ampliação do projeto que estava em curso, de uma educação pública, laica, gratuita, como direito universal. Neste projeto, a metodologia de ensino adotada, a modalidade educacional implementada, a tecnologia utilizada, o modelo de aprendizagem praticado, tudo isso precisa atender à realidade concreta da maior parcela da população brasileira, a única que produz a riqueza que financia a educação: a classe trabalhadora!
Conectividade é sinônimo de democracia digital?
O referido documento tem como pressuposto que vivemos numa era de “ampla conectividade” e ilimitado acesso “às ferramentas de interlocução, aliadas aos meios de comunicação”. Destacamos aí, um dos seus maiores engodos, afirmando que há uma geração de “jovens híbridos”, que usam amplamente a internet. Desta forma, negligencia as profundas diferenças no que diz respeito ao acesso e à apropriação das tecnologias de informação e de comunicação (TIC). Além disso, destaca que os professores da educação básica, ao adotar o ensino remoto emergencial, já deram meio passo no processo de implantação da aprendizagem híbrida, bastando apenas completar esse processo. Entretanto, desconsidera que, mesmo havendo um crescimento no acesso a computadores nos últimos tempos, persistem as desigualdades e a exclusão digital.
Ao analisar o cenário de conectividade no Brasil durante a pandemia da COVID-19, o Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br) publicou em 2021 o Painel TIC-COVID, que identificou um aumento nos índices de uso de tecnologias para atividades diversas, como teletrabalho, cultura, comércio eletrônico, telessaúde, ensino remoto, entre outras. No entanto, para atividades educacionais, enquanto as classes A e B usam predominantemente aparelhos em geral com melhor conectividade – notebook, computador de mesa e tablet; as classes C, D e E utilizam em sua maioria aparelhos celulares com funcionalidades restritas, cuja conexão é limitada pelos dados móveis. Além disso, a necessidade de busca por emprego e de dedicação aos cuidados familiares foram apontadas como principais motivos para o não acompanhamento das atividades remotas por estudantes em condição de vulnerabilidade. Cabe ressaltar que a classe A e B possui cerca de 14% dos brasileiros, já as classes C, D e E são constituídas por cerca de 86% de brasileiros.
O referido documento omite a relação intrínseca entre o acesso à internet e as desigualdades econômico-sociais de nossa população. A propagação de informações a respeito dessa conectividade dá a ilusão que todos e todas possuem igual acesso e autonomia diante das tecnologias, como se estivessem dadas as condições para a efetivação da aprendizagem híbrida.
Ao invés de democratizar a educação, colocar a conectividade como o foco para a implementação de uma proposta de aprendizagem, expõe e exclui ainda mais estudantes em situações de vulnerabilidade, que se agravaram durante a pandemia.
É o que se verifica no índice crescente de evasão escolar, devido, além das razões já elencadas, à necessidade desses estudantes priorizarem o trabalho para ajudar na renda familiar. Por isso, propor a aprendizagem híbrida com base numa conectividade restrita a um pequeno grupo de brasileiros favorece e privilegia a parcela mais abastada da população.
A aprendizagem híbrida é possível?
Segundo o documento do CNE, a aprendizagem híbrida objetiva consolidar a acessibilidade curricular, bem como potencializar os resultados das metodologias ativas para garantir melhores resultados na aprendizagem dos estudantes.
A proposição de metodologias que buscam a articulação entre experiências educativas em ambientes presenciais e online surgiu no Brasil mesmo antes da pandemia. Desde então, tratava-se de inserir atividades presenciais em cursos de graduação por meio da EaD. Em decorrência da pandemia da COVID-19, passamos a acompanhar a implementação de um regime emergencial de ensino, denominado por ensino remoto ou regime especial de aulas não presenciais.
Com a alegação que a pandemia estava sob certo controle, em 2021 os sistemas de ensino passaram a propor estratégias que buscassem promover uma espécie de transição entre o ensino remoto e o ensino presencial. Neste momento surge a proposição da aprendizagem híbrida. Antes, as atividades educacionais que diferiam em tempo e espaço entre professores e estudantes eram apresentadas como uma forma de complementação às atividades formativas desenvolvidas no âmbito educacional. Agora, a proposta trazida pelo CNE estende estas atividades para os cursos presenciais, efetivando-as como práticas regulares.
Segundo esse documento, a aprendizagem híbrida é apresentada como uma metodologia flexível e inovadora, mediada por TIC. Entretanto, os termos “flexibilização” e “inovação” agem como uma espécie de “cortina de fumaça” para o que de fato está por vir. Na proposta do CNE, a aprendizagem híbrida não é considerada uma modalidade de ensino, tal como ocorre com a EAD. Nessa medida, os currículos e programas de ensino que fizerem uso desse tipo de atividade educacional, não terão que atender aos parâmetros de qualidade estabelecidos pelos processos regulatórios e avaliativos, sobretudo na educação superior.
As ciladas embutidas na proposta de aprendizagem híbrida
Nos últimos anos diversas pesquisas e entre essas, destacamos aquelas desenvolvidas pelos pesquisadores do Kadjót, têm evidenciado o uso limitado e distorcido das TIC nas práticas educativas. As pesquisas evidenciam certo fetichismo em torno do papel que as tecnologias assumem no processo de ensino e aprendizagem. Além disso, aspectos como a desigualdade nas condições de acesso a equipamentos, internet de qualidade e a falta de uma formação docente adequada também são identificados como obstáculos à tecnologia como mediação no trabalho pedagógico como formação humana.
Entendemos que a implementação da aprendizagem híbrida, do modo como está sendo proposta, tende a ampliar ainda mais as desigualdades existentes na educação pública brasileira. Na verdade, a sua utilização ampla e irrestrita nos diversos níveis e modalidades de ensino tende a favorecer principalmente os grandes grupos empresariais que se colocam na condição de comerciantes de “soluções tecnológicas salvadoras”. Há também o risco real de uma ampliação da precarização do trabalho docente.
É importante salientar o esforço hercúleo realizado por trabalhadores da educação durante a pandemia, na perspectiva de manter os seus estudantes minimamente mobilizados. Mas é preciso reafirmar como isto tem exposto a precariedade das instituições educacionais e a ausência de condições para que estudantes e professores/as da escola pública realizem a aprendizagem híbrida, conforme o proposto. De fato, a experiência vivida desde março de 2020 nas escolas demonstra a vulnerabilidade dos sistemas educacionais.
A proposta do ensino / aprendizagem / estudo híbrido assume, de forma equivocada e falaciosa, o pressuposto de um acesso generalizado aos meios tecnológicos. O que nos leva a reforçar que a maior parte dos estudantes da rede pública se encontra em situação de vulnerabilidade em relação a alimentação, itens de higiene pessoal, vestuário, e ainda mais no que diz respeito ao acesso à internet.
Desconsiderar esta realidade, de uma parte, revela o descaso do governo e do Estado com os trabalhadores e com os seus filhos. Ao mesmo tempo, evidencia o alinhamento com empresas e instituições privadas cujos interesses se concentram na produção e comércio de tecnologias.
É importante buscar respostas para a crise que estamos vivendo e manter o vínculo dos estudantes com a escola, mas adotar equivocadamente um modelo híbrido, ignorando pontos tão importantes quanto a garantia de acesso e permanência de todos e todas, custará caro ao desenvolvimento cognitivo, volitivo e afetivo dos estudantes.
Assinam esse documento:
Profa. Dra. Adda Daniela Lima Figueiredo Echalar
Universidade Federal de Goiás
Profa. Dra. Arianny Grasielly Baião Malaquias
Instituto Federal de Goiás
Profa. Dra. Cláudia Helena dos Santos Araújo
Instituto Federal de Goiás
Profa. Dra. Daniela Rodrigues de Sousa
PUC Goiás – Escola de Formação de Professores e Humanidades
Profa. Ma. Elisa Vaz Borges Silva
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás (PPGECM-UFG)
Prof. Me. Felipe Naves Silva
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás (PPGECM – UFG)
Profa. Dra. Gislene Lisboa de Oliveira
Universidade Estadual de Goiás
Prof. Dr. Jhonny David Echalar
SEDUC – Goiás
Profa. Dra. Joana Peixoto
Instituto Federal de Goiás
Profa. Júlia Cavasin Oliveira
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás (PPGECM – UFG)
Prof. Dr. Júlio César dos Santos (Júlio Vann)
Instituto Federal de Goiás
Prof. Me. Kliver Moreira Barros
Mestre em Educação para Ciências e Matemática
Instituto Federal de Goiás
Prof. Dr. Luso Soares Madureira
Doutor em Educação – PUC Goiás
Prof. Marcos Antonio Alves Filho
Mestrando no PPG em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás (PPGECM UFG).
Prof. Dr. Marcos Vinícius Ferreira Vilela
Universidade Federal de Goiás
Profa. Dra. Natalia Carvalhaes de Oliveira
Instituto Federal Goiano
Profa. Ma. Regiane Machado de Sousa Pinheiro
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Matemática da Universidade Federal de Goiás (PPGECM-UFG)
Prof. Me. Tiago Rodrigues do Prado
Mestre em Ciências Ambientais e Saúde
Profa. Walkíria dos Reis Lima
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação para Ciências e Matemática do Instituto Federal de Goiás (PPGECM – IFG)
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